“Decisões judiciais e lixões: a erosão silenciosa do Estado Ambiental de Direito”
- ANAMMA Brasil

- há 1 dia
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Nas últimas décadas, o Brasil consolidou um conjunto expressivo de normas e políticas públicas voltadas à gestão de resíduos sólidos e à proteção ambiental. Contudo, esses avanços vêm sendo sistematicamente corroídos por decisões judiciais e acordos ministeriais que, sob o argumento da “continuidade dos serviços essenciais”, autorizam a operação de lixões ou aterros municipais sem licenciamento ambiental válido e sem tratamento do chorume, o efluente mais tóxico e perigoso jamais produzido por nossa sociedade
Trata-se não apenas de uma distorção técnica, mas de um flagrante crime ambiental, previsto no artigo 54 da Lei nº 9.605/1998, que tipifica como infração penal “causar poluição que resulte ou possa resultar em danos à saúde humana, à fauna ou à flora”.
A Resolução CONAMA nº 420/2009 é inequívoca ao reconhecer lixões e aterros irregulares como áreas contaminadas, exigindo sua remediação, isolamento e monitoramento. A manutenção desses locais ativos, despejando chorume diretamente no solo ou em valas ou em rios, oe mesmo diluído em estações de tratamento de esgotos domésticos, sem sistema adequado de impermeabilização ou drenagem do biogás, constitui violação direta ao artigo 225 da Constituição Federal e à Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010), que determinam a destinação final ambientalmente adequada e o encerramento definitivo dos lixões em todo o país.
O caso Goiânia / Goiás
Em Goiânia, a situação beira o absurdo jurídico-ambiental. O Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) manteve a operação do chamado “aterro sanitário” municipal, mesmo reconhecendo a inexistência de licença ambiental válida e a presença de falhas graves de operação. O empreendimento, de fato, funciona sem tratamento do chorume e sem um responsável sistema de impermeabilização e drenagem adequados, contaminando o solo, as águas subterrâneas e o Rio Meia Ponte, principal fonte hídrica da capital.
O Ministério Público de Goiás já havia requerido a interdição progressiva do local por descumprimento de TAC e ausência de licença, mas a decisão judicial optou por manter a operação temporariamente, transferindo ao município a responsabilidade pelo licenciamento — competência que, por lei, cabe ao órgão estadual, no caso, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD).
Tal inversão de competência e de prioridade técnica cria um precedente perigoso: autoriza a permanência de um passivo ambiental ativo, sem controle do órgão licenciador competente e sem tratamento do efluente mais perigoso produzido por aterros — o chorume.
O resultado prático é a legitimação judicial da contaminação. O chorume, riquíssimo em metais pesados, compostos orgânicos persistentes e amônia, infiltra-se livremente no subsolo, ou é descarregado (eventualmente diluído numa ETE) em córregos e rios, configurando crime ambiental continuado e uma grave omissão institucional.
O caso Manaus / Amazonas
Situação semelhante se observa em Manaus, onde o Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM) homologou, em abril de 2024, um acordo entre o Município de Manaus e o Ministério Público Estadual que prorrogou até 2028 a operação do atual aterro do km 19 da AM-010.
A decisão foi justificada pela necessidade de “garantir a continuidade dos serviços de coleta e disposição final”, mas ignora um fato essencial: o atual aterro opera sem tratamento adequado de chorume, com lançamentos recorrentes no meio ambiente, na bacia do Tarumã e sem licenciamento estadual regular pelo IPAAM, órgão ambiental competente.
Assim como em Goiânia, a Prefeitura de Manaus invocou a competência municipal para o gerenciamento do serviço, mas desrespeitou o devido licenciamento ambiental, previsto na Lei Complementar nº 140/2011, que reserva aos Estados a autorização e o controle de empreendimentos de significativo impacto ambiental.
Ao homologar tal acordo, o TJ-AM legitimou uma situação irregular e perigosa, transferindo para o futuro (2028) o encerramento ou substituição do aterro, o que significa, na prática, mais quatro anos de descarga contínua de chorume não tratado sobre o solo amazônico.
Um padrão de erosão institucional
Os casos de Goiânia e Manaus não são isolados. Revelam um padrão institucional de tolerância e conivência: prefeituras que descumprem a legislação federal ou mesmo estadual, não tratam seus efluentes tóxicos, operam sem licenciamento estadual válido e, ainda assim, encontram amparo judicial sob o argumento de “evitar colapso na limpeza urbana”.
Esse tipo de decisão fragiliza o Estado Ambiental de Direito e enfraquece a autoridade técnica dos órgãos estaduais de meio ambiente, que deveriam exercer o controle licenciatório e fiscalizatório. Nenhuma decisão judicial pode revogar o dever constitucional de proteger o meio ambiente.
Ao permitir a continuidade de atividades poluentes e não licenciadas, o Poder Judiciário acaba transformando a exceção em regra, institucionalizando o crime ambiental e postergando a solução técnica definitiva. A questão da ausência de tratamento do chorume destes lixões municipais é o maior de todos os flagrantes ambientais cometidos pelos Prefeitos ou operadores destas áreas contaminadas, que teimam em ignorar e negligenciar sua complexidade e periculosidade, causando um enorme dano a saúde publica e ao meio ambiente
Chamado à coerência ambiental
O país precisa reverter urgentemente esse ciclo de complacência e impunidade.
A proteção ambiental e o saneamento básico não se constroem com retórica, mas com licenciamento efetivo, fiscalização técnica e responsabilidade penal pelos danos causados.
Enquanto decisões judiciais e acordos ministeriais legitimarem a operação de lixões sem licença e sem tratamento do chorume, continuaremos produzindo um passivo tóxico de proporções nacionais — invisível, mas devastador.
A verdadeira justiça ambiental não é a que adia o cumprimento da lei, mas a que a faz valer integralmente, com base na técnica, na ciência e na ética pública.
Marçal Cavalcanti
Secretário Municipal de Meio Ambiente de Pilar AL
Presidente da ANAMMA

























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