Imagine três barcos navegando por três corpos hídricos distintos do Brasil.
O primeiro flutua sobre o majestoso Rio Tapajós, na Amazônia. A paisagem parece intacta: floresta viva, céu refletido nas águas. Mas o perigo está submerso. Micropartículas de mercúrio – altamente tóxicas e cancerígenas – lançadas pelo garimpo ilegal contaminam os peixes, afetam a fauna aquática e envenenam silenciosamente milhares de pessoas, sobretudo indígenas e populações ribeirinhas. É um envenenamento invisível, persistente e irreversível.
Desde a antiguidade, o mundo conhece o perigo e os efeitos da contaminação das águas e dos organismos aquáticos por mercúrio. O episódio de 1956 conhecido como “Doença de Minamata”, no Japão – quando o consumo de peixes contaminados desencadeou alerta internacional – levou, posteriormente, à criação de um acordo global para o controle do uso desse metal: a Convenção de Minamata, em 2013.
O segundo barco corta a superfície cinzenta do Rio Tietê, na Grande São Paulo. Um rio que já foi símbolo de desenvolvimento e navegação hoje luta pela sobrevivência. Misturados às suas águas estão esgoto urbano, resíduos de agroquímicos, efluentes industriais e, mais recentemente, chorume de aterros sanitários, diluído artificialmente dentro de estações de tratamento de esgoto doméstico – como se fosse possível “neutralizar” o veneno espalhando-o.
Paradoxalmente, cerca de 300 quilômetros adiante, esse mesmo rio serve para recreação, irrigação e até abastecimento de populações que desconhecem os contaminantes dispersados ao longo do percurso.
O terceiro barco avança sobre a Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Por trás das montanhas icônicas e da paisagem turística, a baía recebe diariamente uma carga invisível de poluentes emergentes, óleo da indústria offshore, esgoto não tratado e efluentes industriais.
Soma-se a isso o chorume proveniente de aterros sanitários e antigos lixões da região metropolitana – incluindo o de Gramacho –, que é misturado ao esgoto nas ETEs e lançado ao mar com substâncias que não são removidas pelos processos convencionais de tratamento, pois essas estruturas não foram projetadas para tratar ou remover tais poluentes.
Três cenários distintos. Um mesmo enredo dramático: o Brasil está contaminando suas águas com venenos invisíveis – seja na floresta amazônica, nos grandes centros urbanos ou nas zonas costeiras. A centenária e persistente crise da contaminação por mercúrio é amplamente difundida e reconhecida, ainda que pouco debelada, ensinada nas escolas e tratada em acordos globais. No caso do chorume, entretanto, a omissão é agravada pelo desconhecimento:
pouco se fala, pouco se debate, e a sociedade desconhece por completo sua gravidade e seus efeitos devastadores sobre a qualidade dos nossos rios. Diferentemente do mercúrio, concentrado majoritariamente na região Norte e Centro-Oeste em áreas de garimpo, o chorume é lançado como carga poluente em todas as regiões do Brasil.
Um país que dilui veneno em plena crise hídrica
Uma das mais graves experiências provocadas pelas mudanças climáticas é a crise hídrica que assombra os grandes aglomerados urbanos, cuja recorrência aumenta a cada ciclo. Secas que antes ocorriam a cada 50 anos hoje se repetem em intervalos de apenas cinco (como a maior crise da história em São Paulo, em 2014/2015, e a crise nacional de 2021).
Enquanto enfrenta secas severas, mudanças climáticas e redução da disponibilidade de água potável, o Brasil permite que estações projetadas exclusivamente para tratar esgoto doméstico recebam chorume de aterros sanitários, efluentes não domésticos (ENDs) e resíduos industriais de alta toxicidade.
O chorume contém uma mistura perigosa de metais pesados, fármacos, resíduos químicos, microplásticos, amônia, sais, hormônios e PFAS – substâncias conhecidas como “poluentes eternos”, pois não se degradam e se acumulam na cadeia alimentar (bioacumulação). Ao serem diluídos nas ETEs, esses contaminantes não desaparecem: apenas se dispersam pelos rios que abastecem cidades, irrigam plantações e produzem água de reuso.
Especialistas são enfáticos: diluição não significa tratamento. É apenas uma forma de mascarar a contaminação.
Mudanças climáticas e a contradição estratégica
Com a redução das chuvas e o aumento das temperaturas, a produção de água de reuso tornou-se prioridade nacional. Contudo, essa meta entra em contradição direta com a prática atual: como produzir água segura se o esgoto está sendo propositalmente contaminado com chorume e efluentes tóxicos?
As estações de tratamento, que deveriam ser verdadeiras “fábricas de água” em tempos de crise climática, estão se transformando em pontos de dispersão de substâncias perigosas.
O cenário representa riscos significativos para a saúde pública e para a qualidade ambiental das bacias hidrográficas brasileiras.
Pesquisas nacionais e internacionais demonstram que compostos presentes no chorume e nos efluentes industriais não domésticos estão associados a doenças neurológicas, câncer, distúrbios hormonais, infertilidade e alterações genéticas. São substâncias que atravessam os sistemas de tratamento atuais, alcançam os alimentos, a água potável e o corpo humano.
Se o cenário persistir, o Brasil corre o risco de transformar – ou consolidar – seus rios em vetores de doenças crônicas, com impactos irreversíveis sobre a saúde pública, a economia e a segurança hídrica.
Chamado à responsabilidade
Esta não é apenas uma falha técnica. É uma escolha política e empresarial, com consequências sanitárias e morais. Há tecnologias prontamente disponíveis, a custos viáveis – sobretudo quando se consideram os danos ambientais e sociais provocados pela opção inaceitável de não tratar adequadamente o chorume. O país não pode enfrentar a crise climática contaminando as próprias fontes de água que garantem sua sobrevivência.
urgente que o poder público assuma seu dever constitucional de proteger os recursos hídricos e que as empresas de saneamento adotem um compromisso real com a integridade ambiental. A omissão não é mais possível.
A pergunta que fica é direta e inevitável: até quando diluiremos o veneno nas águas do Brasil antes de admitir que estamos diluindo nosso próprio futuro?
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